quarta-feira, 6 de março de 2019

Quem me ensinou a nadar? Foi, foi, marinheiro, foi os peixinhos do mar...

Eu sempre achei a cultura popular, em suas formas de expressão alegres, bem-humoradas, politicamente incorretas, com suas peças aparentemente toscas, a cultura superior de uma sociedade... Com os cortes a vivo e a fundo, rasgando a madeira e nela aflorando a alma... com músicas coletivas, participativas, resistentes, de percussão dura e marcada, de vozes altas, falsetes, quase gemidos, de rabecas e pandeiros de dor, amor e alegria, não necessariamente nessa ordem... Da simbiose com a terra, com o barro, de onde saem panelas, potes, pratos, moringas, taperas, um tudo necessário para usar, morar e viver. Mas gosto principalmente de sua rebeldia, da ironia fina e ferina, dilacerante, na verdade, que corta fundo nos que querem enquadrá-la em cânones de forma, de métrica, de textura, de arquitetura, de qualquer coisa que não a torne ela mesma e a submeta aos desejos de normatização....
O carnaval é assim, irredutivelmente resistente, finamente irônico, mesmo quando explícito, o "ridendo castigat mores" dos romanos elevado à sua expressão perfeita. É o momento de se expressar fora das conveniências e das vivências organizadas pelas leis, usos e costumes, que em sua maioria são feitos apenas para reduzir o mundo à tristeza dos tristes. Eu gosto muito do carnaval, e gostei muito mais ainda deste carnaval, que sacudiu as pilastras da varanda, levantou a poeira dos móveis e riscou o chão encerado da casa grande Brasil.
Casa grande de dono novo, dono que não gosta de festa, prefere ordem unida; que não gosta de alegria, prefere posição de sentido; que não gosta de barulho, prefere o silêncio dos porões e dos cemitérios. Casa grande que não quer festa, não quer transgressão, não quer crítica... quer confissão de pecados, quer penitência, quer castigo, quer joelho no milho e palmatória nas mãos dos que se atrevem....
Mas a senzala, o povo, a cultura popular, não querem nem saber disso... O Brasil voltou, mesmo que por alguns dias a ser Brasil, de todas cores, de todos os gêneros, de todos os sonhos, de toda alegria, de toda transgressão, de toda irreverência, de toda música, de todo grito de guerra... Neste carnaval, o Brasil se reencontrou consigo mesmo e se libertou do silêncio e da disciplina dos donos e feitores da casa grande e, aos dois meses da posso do novo feitor e seus capitães de mato, virou um gigantesco quilombo, onde todos e cada um eram Zumbis e Dandaras, às sombra dos Palmares tupiniquins, todas e todos eram de novo cariris, tapuias, congos, angolas e malês.
E a revolta explodiu na cultura, já que e a economia, a política e a religião não são mais espaços do povo, mas dos coronéis, dos novos senhores de engenho, dos doutorzinhos de Chicago, dos apóstolos redivivos.... Ao povo sobrou a cultura, a mesma cultura que sabe que onde come um comem dois, a cultura solidária na dor e na crítica, a cultura que irmana e resiste, a cultura que expressa a alma profunda do Brasil, feita de carne negra e sangue vermelho, em vão amordaçados e castigados para que se calassem.
Mas o Brasil gritou, gritou em alto e bom som, do alto dos trios elétricos, na xepa dos megablocos, nas ruas e avenidas, nos corsos do interior, nos bailes das sociedades, na rua, na chuva, na fazenda, e nas casinhas de sapê, como dizia a antiga canção... Gritou e gritou bonito!!!!
Centenas de milhares de pessoas juntas, irmanadas por serem multidão, soltaram a voz, a criatividade, o talento poético e musical popular e deram, alegres, o recado de seu inconformismo e sua resistência a estes que querem matar o carnaval, e com ele a alegria, que ainda é das poucas coisas que nos restam.
E como foi bonito!!! E como pegou os caretas e hipócritas coveiros da alegria e da vida no contrapé!!! E eles achavam que tinham ganhado alguma coisa ao vencer a eleição!!! Ganharam o governo, mas, como foi visto, e ouvido aos gritos, não ganharam o coração do povo!!!
O povo, esse tirou o bolsoneco de Olinda do carnaval debaixo de uma chuva de cerveja... O que faz um coveiro da alegria no carnaval?
O povo entendeu tudo e expressou tudo: "Doutor, eu não me engano o bolsonaro é miliciano"!!! O povo vestiu mais fantasia de laranja neste do que em todos os carnavais juntos!!! O povo, na síntese perfeita da transgressão, gritou "Ai, ai, ai ai, bolsonaro é o carai...". O povo, com muito mais didática relacional que o MEC inteiro e suas ordens unidas infantis, num exemplo de resiliência reversa, deixou as coisas claras e explícitas: "Ei, bolsonoro, vá tomar no cu..." Vox populi, vox dei....
E de Belém a Itanhaém, de Salvador a Fortaleza, do Rio de Janeiro a Belo Horizonte, de São Paulo a Porto Alegre, de novo ressoou o grito de guerra que apavora os coveiros da alegria: "Ele não!!!".
E a Sapucaí gritou, e o Anhembi gritou e as escolas de samba cantaram hinos nacionais de resistência em seus sambas, ecoando a voz do povo, deixando o pobre colombiano como uma colombina tonta com o peso, a intensidade, a profundidade e a verdade do saber popular!!!
E a Mangueira foi a campeã do carnaval cantando, vivendo e mostrando a História que as histórias da casa grande não contam. Abriu os porões e as senzalas, e denunciou o machismo, o racismo, a misoginia, e insipidez da casa grande... Ocupou o terreiro num batuque de roda e de palma da mão, e disse: "Eu sei o que vocês fizeram nesses últimos 400 anos!!!". E deixou o rei nu, os coronéis pelados, mudos pelo peso imenso daquele terrível cantar que soube extrair alegria da dor de sempre....
E a Tuiuti nos levou ao paraíso, e deu o maior bode... e de novo mostrou que o povo lembra dos seus até quando não pode dar nome a eles... E viva bode soberano de Garanhuns, aquele que soube fazer do Brasil uma pátria para todos e que deve ter rido muito no cercadinho onde o confinaram!!!
E ao senhor, triste senhor da casa grande, restou tentar tornar a alegria imoral, como se fosse possível alguma moral sem alegria; tentar demonizar o carnaval, como se possível calar todo um país; tentar tornar, feia, suja, depravada como ele, toda a felicidade de um povo que, mesmo "quae sera tamem" está se reencontrando consigo mesmo e que, neste carnaval, lembrou do velho Ataulfo e levantou, sacudiu a poeira e deu a volta por cima. E que volta!!!!
É por isso que eu gosto tanto da cultura popular, porque ela nos lembra que ainda estamos vivos, que resistimos, que não desistimos, que lutamos e cantamos, porque nossa casa é casa de bamba.
E agora, se eles achavam que tinham nos emparedado, nos agrilhoado ao tronco e nos posto debaixo de chibata, eu tenho algo a lhes dizer: eles erraram, e erraram feio.
Porque nós somos cipó de aroeira, madeira dura, pau e pedra, mas também somos sangue e olhos vermelhos, e vermelho nos bate o coração.
Nós somos todos como o povo de Umbanda que tomba mas não cai!!!
E se acharam que tínhamos, ido, sumido, nos escafedido, nos calado, silenciado, ou acovardado, negativo!!! Nós somos Adoniram: "Se oceis pensava que nós fumos imbora, nóis enganemo oceis!!! Fingimo que fumo e vortemo! Ói nóis aqui traveis!!!"
Viva o Carnaval!!! Viva o Brasil!!! Viva o povo brasileiro!!!!
Marieli vive!
Lula livre!