quarta-feira, 13 de fevereiro de 2019

As vestais e suas pedras

As vestais e suas pedras


O navio, à deriva e com o casco perfurado pela direita, está afundando, e parte da chamada esquerda, como sempre, está culpando outros grupos da própria esquerda pelo naufrágio iminente...
Este é um dos maiores problemas do campo progressista: a tentação hegemonista de alguns dos grupos e grupelhos, ditos de esquerda, que os impede de perceber táticas, estratégias, campos de ação política e locais de atuação política, social e parlamentar, e que os deixa muito confortáveis, nos bares da vida, sentados diante um chopp, com uma pilha de pedras à mão, para procurar uma vidraça, uma telha de vidro para apedrejar.
A acusação da vez, feita pelo jornal do PCO de hoe3, 13/02/2019 (https://www.causaoperaria.org.br/rodrigo-maia-revela-ala-direita-do-pt-fez-acordo-para-votar-em-deputado-bolsonarista-para-presidencia-da-camara/), é que a “ala direita” do PT fez, ou teria feito, um acordo, segundo revelações do deputado Rodrigo Maia, para eleger um deputado bolsonarista para a presidência da Câmara dos Deputados, o próprio Rodrigo Maia, do DEM.
A eleição das mesas diretoras da câmara federal e do senado é um espaço institucional de disputa partidária, mas não puramente ideológica e sim muito mais administrativa e política. Cada cargo da mesa e cada presidência e relatoria de comissão significam não apenas um conjunto de pessoal de assessoria e de recursos, que podem ser usados não apenas na ação partidária dentro do congresso, mas também na ação política na sociedade na sociedade.
Mas também, e principalmente no caso dos partidos de oposição e minoritários no parlamento, a presença nas mesas diretoras é espaço privilegiado para o conhecimento prévio e de possibilidade de voz ativa na câmara e no senado, permitindo não apenas se inteirar, mas denunciar com conhecimento de causa tentativas de projetos de lei espúrios, ou manobras para aprovação destes projetos de lei, medidas provisórias e decretos, gestados e com estratégia de tramitação e aprovação definida nas reuniões das mesas diretoras e das comissões parlamentares. Sem a presença nestas instâncias, seria impossível a qualquer partido o tensionamento político e sequer a denúncia das manobras nas quais o parlamento é useiro e vezeiro....
Para isso, a disputa administrativa não tem o campo ideológico como campo determinante exclusivo na composição de blocos parlamentares para a disputa dos cargos das mesas diretoras e, consequentemente, na participação nas presidências e relatorias das comissões parlamentares. O que é determinante para isso é o tamanho das bancadas de cada partido, e a sua capacidade de articulação em blocos partidários, blocos específicos para essas eleições internas. A questão ideológica nem sempre se reflete de forma cristalina na composição dos blocos, como pôde ser visto claramente na cisão do campo progressista na última eleição da câmara federal, onde PT, PSOL e PSB se articularam num bloco de centro esquerda, e partidos de esquerda, como o PCdoB, e de centro-esquerda, como o PDT, se aliaram a partidos de centro-direita e de direita num outro bloco dito de oposição ao bloco majoritário formado pela direita e que indicou e elegeu Rodrigo Maia para a presidência da câmara...
Na “revelação”, feita por Rodrigo Maia, de um acordo com a “ala direita” do PT para a sua eleição para presidência da mesa, enfaticamente ecoada pelo jornal do PCO, ocorre a confusão primária entre bloco parlamentar específico para a eleição das mesas diretoras do parlamento e bloco parlamentar de atuação política, tanto no parlamento quanto na sociedade. Isto fica claro na formação de um bloco de oposição na câmara federal com o PDT, PSOL e PCdoB, com a exclusão deliberada do PT, não para a eleição da mesa diretora, onde eles se dividiram, mas para a atuação parlamentar.
E aí parte da esquerda parte para um apedrejamento impiedoso ao PT, e exclusivamente ao PT, alvo desde sempre, pelo seu tamanho, inserção social e número de votos e de parlamentares, dos desejos mais inconfessáveis de um bom número de grupos da esquerda. Mas nenhuma palavra a respeito do PCdoB ou mesmo do PDT, que apoiaram ostensivamente Rodrigo Maia. Como o é para a direita, para essa esquerda o fantasma embaixo da cama a assombrá-los é sempre e apenas o PT.
Ao ver esses episódios de apedrejamento da esquerda pela esquerda, sempre me vem à mente, numa analogia imperfeita, ma non troppo, o episódio de Jesus com a mulher adúltera, e a fala do Mestre sobre apenas quem não tiver pecado poder atirar a primeira pedra. Naquele episódio, até os “puros” fariseus abaixaram as cabeças e se retiraram.
Mas os que veem o fantasma do adultério ideológico, chamado no jargão político de esquerda de política de conciliação, capitulação, traição e afins, precisam ser lembrados de que só quem não tem pecado pode atirar a primeira pedra.... E o pecado maior na política é o deslocamento entre a ideologia e o mundo real, que gera a incapacidade de comunicação com as massas, as pessoas que não pertencem ao grupo dos puros, e consequentemente a ausência de uma representação efetiva em número de votos, de mandatos parlamentares e até de participação nas estruturas partidárias...
Para esses fariseus políticos de hoje, travestidos de revolucionários, isso é irrelevante, pois se não sabem, ou não querem saber, como funciona o processo político, pretendem deter o monopólio de saber como ele deveria funcionar, e isso é o que importa... mesmo que praticamente ninguém os ouça e siga.
O problema é que na vida concreta da sociedade real isso apenas mascara a falta de representatividade política e o desprezo pelo funcionamento da política democrática, tão repudiada por estes que não compreendem que é preciso superar a democracia burguesa na ação dentro dela, e não apenas negá-la em tese e condenar à capitulação e traição os que preferem agir politicamente para transformá-la e fazer andar o processo revolucionário.
Esse vanguardismo todo é como um espelho perverso do mais fascista reacionarismo, que também nega a democracia burguesa, no fetiche da volta do autoritarismo ditatorial. É a ignorância do princípio elementar do materialismo histórico do desenvolvimento desigual e combinado....
É necessário, principalmente nos dias de hoje, antes de dar ouvidos a revelações, denúncias e outros tipos de informação, ainda mais vindos da direita, ver além da condenação fácil e da cobrança de uma pureza de fundo moralista e legalista, travestida de revolucionária. É fundamental examinar o contexto, o espaço, e a natureza da ação política denunciada, e a prática, que, afinal, é o critério superior da verdade, de quem está sendo objeto desse denuncismo divisionista.
O divisionismo é uma das estratégias favoritas da direita para enfraquecer o campo progressista, e só funciona tão bem no Brasil porque uma parte da dita esquerda a encampa alegre entusiasticamente e faz, com todo empenho, o serviço divisionista sujo para a direita.... Esta esquerda se esquece, ou não quer lembrar, que não se faz política entre iguais... e que, sim, a política é feita no embate ideológico classista, mas também é feita, dentro de uma democracia burguesa conservadora onde estamos inseridos, dentro dos partidos políticos e nas suas relações e ação nas instâncias representativas internas e no parlamento, além da luta social em si....
Ficar procurando capitulação, rendição, conciliação e submissão à direita ou ao bolsonarismo nos processos internos de eleição das instâncias parlamentares é perverso, porque julga o processo político fora de sua territorialidade ampla; é reducionista, pois reduz a luta política ao parlamento, quando não considera o todo da ação política de quem denuncia; e é imobilista, pois, em nome da pureza ideológica, impede que os partidos tenham espaços institucionais para ecoar as lutas sociais no parlamento.
Nestes dias bicudos, é preciso clareza sobre o que está envolvido nas lutas parlamentares e postura crítica frente firme, frente às declarações divisionistas da direita e à sua propagação pelas vestais da esquerda...