terça-feira, 5 de abril de 2022

E A COBRA VOLTOU A FUMAR

Marco Aurélio Monteiro Pereira

Este episódio da nefasta lembrança feita pelo bananinha a uma (uma apenas, das várias) das sessões de tortura às quais  a jornalista Miriam Leitão foi submetida durante a ditadura militar, mostra algumas coisas que nosso esporte nacional de passar pano e varrer pra baixo do tapete, os mandos e desmandos que uma certa elite brasileira, civil e militar cometeu, comete e (deus nos livre!) tende a cometer como expressão de mando político neste Brasil varonil... 

Esta terra cuja bandeira nunca será vermelha, porque todo o sangue derramado, este sim vermelho, o foi em porões, em grotas, em ermos, em cantos de praia, lugares onde bandeira não frequenta, e não nos salões, nos pomposos prédios públicos, nas mansões dos bairros "nobres". Este sangue derramado na tortura, nos assassinatos, nos desaparecimentos de corpos, na repressão a estudantes, profissionais, mulheres, indígenas e negros, de gente, enfim, movida por um ideal de liberdade coletiva e punida no oculto, no clandestino, no privado das sombras.

Gente, com seus acertos e equívocos, que lutava pela liberdade democrática como valor fundamental e que sofreu cobras e lagartos e jacarés, e paus-de-arara e maquininhas de choque, e afogamentos e estupros e frio e fome e calor, na tentativa  de quebrar os corpos que eram impossíveis de se enfrentar na lógica e na razão política do debate...

Aqui não se trata  de Miriam Leitão nem de dudu bananinha, mas na repetição useira e vezeira, covardemente explícita ou covardemente simulada, da apologia da tortura, da destruição do corpo de quem não se consegue destruir as ideias...

Se Miriam Leitão teve uma guinada liberal depois da ditadura é irrelevante... a tortura esmaga indivíduos e não ideologias.... Quantos não comunistas ou socialistas ou democratas, fora da luta armada, também foram torturados. Quantos filhos sem pais, companheiros sem companheiras, amigos sem amigos isso gerou.... O discurso fácil da guerra à guerrilha cria um balaio onde entra gente que pegou em armas e gente que foi denunciada por razões de traição amorosa, antipatia pessoal, conveniências políticas e afins, jogando todo mundo no balaio disforme de "comunistas".

Eu tinha nove anos em 1964, morava em Astorga, na época uma cidadezinha do interior do Paraná, pouco mais que uma rua principal e algumas transversais... estudava na escola das freiras com minha irmã. Meu pai trabalhava na prefeitura e minha mãe era conhecida como a "Maria da Cachorrada", porque nossa casa era o abrigo certo para todo vira-latas de rua.... 

Meu pai trabalhava como consultor  na prefeitura e nunca teve envolvimento de militância política de esquerda (vejo hoje que era um nacional-desenvolvimentista de horizonte liberal) Mas, no dia 05 de abril de 1964, faz 53 anos hoje quando estou escrevendo, teve sua casa invadida e depredada, minha irmã de 6 anos e eu ameaçados e minha mãe humilhada... Daí foi levado, sem explicações, para não sabia onde....

Na década de sessenta, mesmo minha mãe sendo uma mulher com formação, professora de arte, o controle doméstico era feito pelo marido. Não havia cartão de crédito e era o pai quem assinava os cheques e controlava a conta no banco e pagava as contas do açougue, do armazém, do padeiro da farmácia, do comércio em geral... E o pai foi levado... um desfile macabro de humilhação pública na traseira de um jipe militar, pra cidade toda ver....

Em dois dias, a comida de casa acabou.... Dinheiro já não tinha, a conta do banco foi bloqueada... ninguém do comércio queria vender fiado pra família do comunista (já tínhamos virado a família do comunista no dia seguinte), os amigos do clube onde o pai era diretor, as alunas de arte de minha mãe, meus amigos e as amiguinhas de minha irmã sumiram por passe de mágica.

O primeiro trauma foi a expulsão da escola, alguns dias depois... ninguém queria estudar com os perigosos filhos do comunista de 9 e 6 anos, e a escola das freiras nos botou espetacularmente pra fora, num espetáculo de execração pública, assistido e incentivado pelas noivas de Cristo..

Hoje eu acho que só não houve linchamento porque uma das primeiras pedradas que nos atingiu acertou minha cabeça na fronte, e começou a sangrar muito... Eu estava abraçando minha irmã, completamente descontrolada, e acabamos por ser lavados por todo o sangue que escorria... conseguimos correr e fugir dali, do pátio da escola. Ao chegar em casa a mãe desmaiou quando viu aquele sangue todo cobrindo os filhos e a partir daí caiu numa letargia depressiva muito forte, mas nem tinha como chamar o médico... ele não quis vir nos atender... 

Minha irmã (6 anos) apavorada, minha mãe largada na cama, uma abraçando a outra e eu, do nada passei de um piá para o homem da casa. Tinha que providenciar comida e dar um jeito pra gente sobreviver...

A casa tinha um sala grande, com janelões do chão ao teto e os homens de bem, depois que o pai foi levado, toda noite matavam um dos cachorros da mãe, ela tinha uns 50, e jogavam dentro da sala pelos vidros quebrados... eu ia devagar, pegava o animalzinho, cada um tinha seu nome, e os levava para um matagal próximo, onde havia um buraco de erosão... puxava, às vezes, cães que eram maiores que eu, e com quem eu brincava todos os dias...

Depois de levar o cachorro e soltar longe no mato (isso continuou, 1 cão por dia, até conseguirmos fugir de lá), eu saía andando pelos sítios que havia no entorno da cidade, roubando umas couves aqui, espigas de milho, abóboras, tomate acolá, para que a gente tivesse comida. Duas ou três vezes consegui afanar uma galinha, que durava quase uma semana. Apanhei algumas vezes, quando me pegavam... E nem uma pessoa da cidade falava conosco.. nem uma...

Uma madrugada, eu estava indo pegar feijão num sítio próximo, e ouvi uma voz de mulher me chamar, baixinho.  Era Dona Kimiko, uma imigrante japonesa bem idosa, que não falava português... ela fez sinal para eu ir pra cerca dos fundos de sua casa e passou para mim um embrulho, e saiu correndo. Eram três pratos de comida.... e toda noite eu passei a apanhar a comida até poder ir embora daquele inferno. Nosso único apoio foi uma senhora imigrante idosa que não falava português e a quem eu nunca pude agradecer...

Na época só era possível fazer interurbanos no posto telefônico, mas a mãe não tinha um centavo e na segunda vez que ela foi ao posto a atendente fechou a porta antes dela entrar..... dias depois, ela estava andando na rua, tentando, inutilmente como sempre, conseguir um crédito para comida no armazém, quando levou um tranco de uma mulher, uma de suas melhores ex-amigas, que soltou um embrulho no chão e saiu correndo... era uma quantia em dinheiro... a mãe correu pro posto telefônico e conseguiu falar com meu avô, em Guaratuba, no escritório do ferryboat, e lhe contou tudo....

Dois dias depois, um teco-teco aterrissou na rua principal de Astorga e meu avô correu até em casa e nos levou embora, com a roupa do corpo. Quando o avião desceu em Londrina, o vô levou a gente comer, e eu comi tanto que acabei vomitando tudo, de tanta fome.... Fomos com o vô pra Guaratuba, e nada de notícias do pai.... todo mundo achava que ele tinha morrido.

O fato é que o pai ficou preso 48 dias num quartel em Sorocaba, submetido a torturas mentais e físicas (mangueira de água de alta pressão, surra com fios de luz dobrados), que o deixaram marcado para o resto de sua vida. Foi solto com a roupa do corpo e sem documentos próximo a Sabáudia, cidade próxima a Astorga. Quando voltou a Astorga para nos encontrar, já havia moradores novos em nossa casa, ele foi preso novamente e jogado fora da cidade.... levou quase quinze dias para conseguir chegar em Guaratuba, doente, machucado....

Nem ele nem a mãe nunca mais tocaram no assunto... Sobraram minhas memórias fragmentadas, difusas, de um menino de nove anos, até o dia em que já adulto, depois da defesa de meu Mestrado em História, ele me chamou, me levou a um bar e passou quase dez horas contando o que aconteceu. Disse que eu precisava saber porque não havia nada para eu me envergonhar, que ele havia feito muita coisa errada na vida mas que em Astorga não foi o caso. E me pediu para guardar pra mim o que ele havia dito. Minha mãe, até morrer, nunca falou no assunto. Mas eu adolesci e cresci exposto à inenarrável dor dos dois..... As costas do pai, cheia dos vergões que nunca sumiram dos golpes de fios de luz, se constituíam, de modo ambivalente, na exposição da dor e da esperança.

Agora, quando setores quantitativamente expressivos da sociedade e mesmo do povo mais pobre do Brasil clamam pela volta de um regime como o que moeu e destruiu a minha infância e a de minha irmã, a beleza, a criatividade e a simpatia de mãe e a vida profissional, relacional e familiar de meu pai, que se tornou um cínico, na pior acepção da palavra; e eu vejo o prazer mórbido dos bolsonaros e bananinhas de não deixar morrer, a angústia e sofrimento de quem passou pela barbárie e fico a me perguntar: Que gente somos nós? Como é possível que a normalização de processos de violência física, mental, emocional, sentimental tenha banalizado a violência simbólica, destituindo-a de seu caráter desumano por excelência.... Não há ninguém que mereça isso!!!

E nos chamamos de povo da simpatia, da miscigenação, do jeitinho, da cordialidade, da alegria, do samba e do futebol... Meu Deus!!! É preciso olhar a sujeira imensa que se acumula debaixo do tapete!

Como se dizia na década de 1980, no final da ditadura, quando a barbárie começou a vir à tona: "QUE TUDO SE CONTE, PARA QUE NÃO SE ESQUEÇA E PARA QUE NUNCA MAIS SE REPITA".

Minha solidariedade, em dor, pavor, horror e sangue, a Miriam Leitão!



Um comentário:

  1. Quanta potência e quanta tristeza. Um abraço, Marco Obrigada pelo relato

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